Com prejuízo na casa de R$ 70 milhões, empresa aguarda liberação do crédito com juro especial para se reconstuir a oito quilômetros de onde ficava sua fábrica
LAJEADO (RS) – O rio sempre foi motivo de orgulho para Renato Arenhart, dono da Lajeadense Vidros, indústria de vidros de Lajeado, cidade gaúcha de 100.000 habitantes localizada a 120 quilômetros de Porto Alegre. Há 22 anos, sua fábrica fica num terreno de quatro hectares praticamente colado ao Taquari, uma das mais importantes e imponentes bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul.
A relação entre Renato e o rio sempre foi cordial. O empresário se organizava para ter no local uma marina com bares, restaurantes e lojas. O refeitório dos funcionários, assim como uma pequena horta, ficava a pouquíssimos passos da água. O rio, em troca, dava a Renato uma localização privilegiada, na entrada da cidade. A Lajeadense Vidros – e o Rio Taquari – eram praticamente os símbolos de boas-vindas de quem entrava em Lajeado.
As coisas mudaram, porém, quando a chuva prevista para cair em seis meses caiu em dois dias, no final de abril e início de maio. O rio subiu de seus habituais 13 metros para 32 metros em poucas horas. Renato deixou a indústria num dia para buscar o filho no aeroporto em Porto Alegre, e, quando voltou, só conseguia ver a ponta do telhado do galpão principal. O restante todo estava embaixo d’água. Não só alagado, mas também sendo carregado pela forte correnteza do Taquari.
Aos poucos, o rio, tão importante para Renato e para a Lajeadense Vidros, arrastava correnteza abaixo os 65 anos de história da empresa. Paredes, telhados, maquinários e toneladas de vidro, nada aguentou a força da chuva, do rio e da natureza.
Dois meses depois, a reconstrução
O tempo estava fechado, mas para a alegria dos gaúchos, não chovia quando a reportagem da EXAME atravessou a Ponte do Rio Taquari, em Lajeado, no último dia 3, exatos dois meses após a tragédia climática na cidade.
A chuva, um fenômeno da natureza tido por muitos como um símbolo de descanso e calmaria, hoje representa angústia e apreensão para os moradores do Rio Grande do Sul.
“É só ver na previsão do tempo que vai chover, que todos começam a ficar desesperados, achando que pode haver uma nova tragédia. Estamos todos traumatizados”, disse uma moradora da cidade à reportagem.
Por sorte, então, não chovia naquela manhã. O caminho entre Porto Alegre e Lajeado, pouco mais de uma hora e meia de carro, porém, mostra bem o que aconteceu na última vez que caiu uma forte água por ali. Estradas interrompidas, casas quebradas e abandonadas, e entulhos de lixo espalhados pela rodovia são apenas exemplos de uma lista longa de pequenas recordações de uma semana que os moradores do Rio Grande do Sul gostariam de esquecer.
Assim que se passa a ponte, o pórtico de entrada de Lajeado, duas construções chamam a atenção. Do lado direito, a já conhecida estátua da Liberdade da varejista Havan, que ficou praticamente submersa quando o rio subiu. Do esquerdo, escombros e vidros quebrados do que restou da Lajeadense Vidros. É ali que Renato nos aguarda.
Junto a ele, alguns poucos funcionários de uma empresa terceirizada trabalham para desmontar um forno de temperamento de vidro – a maior máquina da Lajeadense – que passará por reformas para voltar a funcionar, agora em novo local.
“Aqui onde estamos, tinha um prédio”, diz ele. “Ali eram as áreas de máquinas. Mais ali, o estoque. Era tudo muito bonito, mas agora não tem mais nada. As paredes foram levadas pelo rio. As máquinas, o que deu para salvar, levamos para outro local, numa cidade vizinha”.
Da Lajeadense, mesmo, sobrou quase nada. Há muito entulho e lixo no chão. Coisas, inclusive, que nem são da empresa, mas que vieram de indústrias próximas e que pararam por ali. De uma indústria vizinha, por exemplo, chegaram ao terreno da Lajeadense 30 bobinas de papéis, todas estragadas.
Ao fundo, onde ficava o refeitório, um pomar, uma horta, uma plantação de milho e uma árvore frutífera, não há mais absolutamente nada. Só uma mancha marrom e árvores viradas. E o Taquari.
Qual é a história da Lajeadense Vidros
Criada em 1958 pelo pai de Renato, a Lajeadense Vidros nasceu no centro da cidade para ser uma vidraçaria que atendesse a comunidade de Lajeado.
Durante 36 anos, a empresa desenvolveu suas atividades predominantemente no Vale do Taquari e no Vale do Rio Pardo. Em 1994, foi aberta a filial em Porto Alegre, expandindo os negócios e direcionando o foco da empresa para a área de construção civil.
Os investimentos em uma nova sede em Lajeado, construída em 2002, como também aquisição de novos maquinários, equipamentos e novas tecnologias buscadas nas principais feiras da Europa, transformaram uma pequena vidraçaria local num negócio de 50 milhões de reais de faturamento anual com 100 funcionários, atendendo a construção civil dos três estados do sul do país. Mesmo com a cheia, a empresa optou por não demitir ninguém e ajudou 10 famílias de empregados que perderam tudo com um pix solidário, que somado totalizou 180.000 reais.
Hoje, Renato administra a empresa com seus dois filhos, Régis e Roberta. Uma história passada de geração em geração.
Como está a reconstrução da Lajeadense Vidros
Praticamente destruída pela água agora, a empresa de Renato já estava planejando se mudar dali há pelo menos oito meses.
Antes da enchente de maio, a Lajeadense Vidros foi atingida outras duas vezes em menos de um ano. Em setembro, numa outra cheia que atingiu o Vale do Taquari no coração, matando mais de 50 pessoas, parte da indústria de vidros já tinha sido atingida.
“Aquela vez, subiu 2,40 metros. Foi quando levamos parte da nossa produção para um espaço na cidade vizinha, Estrela”.
Em novembro, uma nova chuva, uma nova cheia, e uma nova inundação na Lajeadense Vidros, dessa vez 30 centímetros mais baixa do que a primeira.
Em maio, pela terceira vez,a força do rio foi maior do que a das vigas que sustentavam a empresa. A água subiu 3,7 metros a mais do que na primeira cheia e chegou a passar dos seis metros de altura.
“O nosso escritório, que ficava no segundo andar, não tinha sido atingido até maio. Dessa vez, não só foi atingido como ficou debaixo d’água”, diz.
A perda estimada pela empresa está na casa dos 70 milhões de reais. Só de estoque, foram 250 toneladas de vidros levados pela correnteza. Renato e sua família entenderam que não dava mais para ficar ali.
Uma nova fábrica está no radar da família, ainda em Lajeado, mas a 8 quilômetros de distância do Taquari.
O projeto já está desenhado e aprovado, o terreno comprado, e as expectativas estão nas alturas. Mas ainda falta o primordial: dinheiro. O crédito com juro baixo já foi aprovado numa linha emergencial do BNDES, mas ainda não foi liberado. O banco de desenvolvimento decidiu rever a regulamentação para o empréstimo, restringindo o financiamento para empresas que estavam na mancha de água.
A preocupação é de que empresas em cidades atingidas, mas que não tiveram impacto nas operações, pegassem o dinheiro, reduzindo o valor total a ser emprestado para empresas cujos negócios foram brutalmente atingidos.
“Não queremos dinheiro de graça. Queremos dinheiro a longo prazo”, afirma. “Se me derem um prazo, eu começo a trabalhar, eu vou pagar. Hoje eu tenho mercado, temos clientes. Tá vendendo, mas estamos limitados à produção, que está restringida”.
Renato depende dessa nova fábrica, de 12.000 metros quadrados, numa área alta e longe do rio, para recuperar a produção, hoje limitada a 40% do que se produzia antes das enchentes.
“Mas não dá para desistir”, afirma ele. “Isso é o que eu sei fazer. Esse é o legado que deixarei para minha filha e para meu filho. É nossa família, nossa história, e vamos seguir. Agora em outro lugar”.
Na Lajeadense Vidros, a água lamacenta não arrastou a esperança.
Negócios em Luta
A série de reportagens Negócios em Luta é uma iniciativa da EXAME para dar visibilidade ao empreendedorismo do Rio Grande do Sul num dos momentos mais desafiadores na história do estado. Cerca de 700 mil micro e pequenas empresas gaúchas foram impactadas pelas enchentes que assolaram o estado no mês de maio.
São negócios de todos os setores que, de um dia para o outro, viram a água das chuvas inundar projetos de uma vida inteira. As cheias atingiram 80% da atividade econômica do estado, de acordo com estimativa da Fiergs, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul.